sexta-feira, 30 de novembro de 2012


UM TESTEMUNHO DE AMOR À VIDA

novembro 14, 2008
UM TESTEMUNHO DE AMOR À VIDA
A Irmã Lucy Veturse, da Bósnia, foi estuprada por soldados sérvios durante a guerra entre essas etnias da antiga Iugoslávia, após a queda do comunismo. Embora violentada e humilhada, ela não admitiu o aborto e preferiu ter que deixar a vida religiosa para criar seu filho, do que abortá-lo.
Eis, a seguir, a carta emocionante que ela escreveu à sua Superiora ( publicado na revista Pergunte e Responderemos, Nº 386, 1994, págs. 318 a 321).
 Revda. Madre Geral,
Eu sou Lucy Veturse, uma das Junioristas que foram violentadas pelos milicianos sérvios … acontecimento que atingiu a mim e às duas Irmãs Religiosas: Tatiana e Sendria.
Seja-me permitido não descer a certos particulares do fato. Há experiências tão tristes na vida que não podem ser comunicadas para ninguém a não ser àquele Bom Pastor a quem me consagrei no ano passado com os três votos religiosos.
O meu drama não é a humilhação padecida, como mulher, nem a ofensa insanável feita à minha escolha existencial e vocacional, mas é sobretudo a dificuldade de inscrever na minha fé um acontecimento que certamente faz parte do insondável e misterioso plano dAquele que eu continuarei a considerar sempre o meu Divino Esposo.
Tinha lido, poucos dias antes, o “Diálogo das Carmelitas” de Bernanos e me tinha sido espontâneo pedir ao Senhor poder eu mesmo morrer mártir. Ele me tomou na palavra,…mas de que jeito! Encontro-me atualmente numa angustiante noite escura do espírito. Ele destruiu o projeto de vida que eu considerava definitivo para mim. De improviso me inseriu em um novo desígnio que neste momento é , para mim, ainda a ser descoberto.
No meu caderno de notas tinha escrito, nos anos de minha adolescência, que nada é meu, eu não pertenço a ninguém, ninguém me pertence. Alguém, pelo contrário, me apanhou, numa noite que não queria mais lembrar, me arrancou de mim mesma, pensando tornar-me algo dele.
Era dia quando acordei; o primeiro pensamento foi mesmo aquele da agonia de Jesus no Horto. Desencadeou-se em mim uma luta terrível: perguntava-me, de um lado, por que Deus teria permitido que eu fosse dilacerada e destruída, naquilo mesmo que eu considerava a razão do meu viver, e, de outro lado, para qual novo chamado queria Ele que eu me candidatasse.
A custo, levantei-me e, enquanto auxiliada por irmã Josefina, procurava-me arrumar, escutei do Mosteiro das Agostinianas, que se situava perto do nosso, o toque do sino de Sexta. Fiz o sinal da cruz e mentalmente rezei o hino da Liturgia: “Nesta hora foi nos dada gloriosa salvação, pela morte do Cordeiro, que na Cruz trouxe o perdão…”
O que é, Madre, o meu sofrimento e a ofensa padecida em comparação a tudo aquilo que sofreu Aquele pelo qual eu tinha mil vezes prometido dar a vida? Disse então bem devagar: “Seja feita a tua vontade, sobretudo agora que não tenho outro apoio senão a certeza de que Tu, Senhor, estás perto de mim”.
Escrevo, Madre, não para receber da senhora conforto, mas para que me auxilie a agradecer a Deus por me ter associado a milhares de minhas compatrícias ofendidas na honra e forçadas à maternidade indesejada. Minha humilhação junta-se à delas e, pois que não tenho outra coisa para oferecer para a expiação dos pecados cometidos pelos anônimos violentadores e para uma pacificação entre as duas opostas etnias, aceito a desonra padecida e a entrego à misericórdia de Deus.
Não se surpreenda se eu lhe peço compartilhar comigo o “obrigado” que poderia parecer-lhe absurdo. Chorei, nestes meses, todas as minhas lágrimas pelos meus dois irmãos assassinados pelos mesmos agressores que estão espalhando terror em nossas cidades e pensava que mais do isso não poderia sofrer. Nem imaginava que a dor pudesse ter bem outras dimensões…
À porta do nosso convento batiam cada dia centenas de criaturas famintas, tiritando de frio, com o desespero nos olhos. Lembro-me que na semana anterior uma moça de dezoito anos me tinha assim falado: “Felizes vocês que escolheram um lugar onde a maldade não pode entrar”. Tinha em mãos o livro “As alegrias do Profeta” e continuou em voz baixa: “Vocês não vão mais experimentar o que é desonra”.
Refleti demoradamente naquelas palavras e me convenci de que havia uma parte secreta da dor e do sofrimento de minha gente que ficava despercebida também a mim, e quase sentia um sentimento de pudor por ser excluída de sua participação.
Agora eu sou uma entre elas, uma das tantas anônimas mulheres do meu povo com o corpo destruído e a alma devastada. Nosso Senhor me admitiu a participar de seu mistério de vergonha; mais ainda a mim, Religiosa e freira, concedeu o privilégio de compreender até o fundo a força diabólica do mal.
Sei que, de agora em diante, as palavras de encorajamento e de consolação que conseguir extrair do meu pobre coração, serão com certeza aceitas, porque a minha história é a história delas e a minha resignação, sustentada pela fé, poderá servir, se não de exemplo, pelo menos de referencial para as suas reações morais e afetivas.
É bastante um sinal, uma pequena voz, um chamariz fraternal para colocar em movimentação a esperança de um exército de criaturas desconhecidas. Deus escolheu a mim (Deus me perdoe esta presunção) para guiar as pessoas mais humilhadas da minha gente para um alvorecer de redenção e de liberdade. Não terão mais dúvidas sobre a sinceridade das minhas propostas, porque estou chegando da fronteira da abjeção.
Lembro que, quando frequentava em Roma a Universidade “Auxilium” para a formatura em Letras, uma idosa docente de Literatura Eslava citava os seguintes versos do poeta Alexei Mislovich: “Tu não deves morrer, porque tu escolheste ficar do lado da vida”. Na noite em que fui dilacerada pelos sérvios, por horas seguidas continuava a repetir para mim mesma aquelas palavras que me pareciam como um bálsamo para a alma, mesmo no momento em que o desespero parecia aflorar para me apanhar. Agora tudo passou e, se me volto para trás, tenho a impressão de ter tido um terrível sonho feio.
Tudo passou, mas, Madre, tudo está para começar. No seu telefonema, depois de suas palavras de conforto, de que ficarei agradecida por toda a minha vida, a senhora me colocou uma clara pergunta: “Que farás da vida que te foi jogada no seio? “. Percebi que sua voz tremia ao me colocar esta interrogação, à qual achei pouco oportuno responder logo, não porque não tivesse já refletido sobre a escolha, a decisão a ser tomada, mas para não atrapalhar as eventuais propostas e projetos seus a meu respeito.
Eu já decidi. Se for mãe, o menino será meu e de ninguém mais. Sei que poderia confiá-lo a outras pessoas, mas ele tem direito, mesmo não sendo esperado por mim, nem pedido, ao meu amor de mãe.
Não se pode arrancar uma planta de suas raízes. O grão caído no chão precisa de crescer lá onde o misterioso semeador, mesmo sendo iníquo, o jogou. Realizarei minha vocação religiosa, mas de outra maneira. Não peço nada à minha Congregação, que já me deu tudo. Fico agradecida pela solidariedade fraternal das coirmãs, que nestes dias me encheram de atenções e amabilidades, em particular por não me ter incomodado com perguntas indiscretas. Irei embora com meu filho, se Deus quiser. Não sei ainda aonde, mas Deus, que interrompeu improvisamente minha maior alegria, me orientará e indicará o caminho a percorrer para cumprir sua vontade.
Voltarei a ser uma moça pobre, retomarei meu velho avental, meus tamancos, que as mulheres usam nos dias de semana, e irei com minha mãe a recolher a resina da casca dos pinheiros dos nossos vastos bosques.
Deve mesmo haver alguém que comece a quebrar a corrente de ódio que deturpa, há tanto tempo, os nossos países. Ao filho que vier (se Deus quer que venha) ensinarei mesmo somente o AMOR. Ele, nascido pela violência, testemunhará, perto de mim, que a única grandeza que honra a pessoa humana, é aquela do PERDÃO.

Irmã Lucy Veturse
EMANUEL ARAUJO CRISTAO=GARANHUNS

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