Permito a
transcrição, no todo ou em parte, do texto que se segue, desde que citada a sua
origem:
(Joel
CLETO e Suzana FARO – Monte
de Santa Quitéria, Felgueiras. Degolada por recusar o noivo. O Comércio do Porto. Revista Domingo,
Porto, 27 de Maio 2001, p.19-21.)
Monte
de Santa Quitéria, Felgueiras
DEGOLADA
POR RECUSAR O NOIVO
Joel
Cleto e Suzana Faro (texto)
Foi a 22 de Maio do ano 135 que,
segundo a tradição, foi degolada pelo seu noivo aquela que se tornava deste modo
na primeira mártir no território hoje correspondente a Portugal. Irmã de outras
oito gémeas, Santa Quitéria foi morta no Monte Pombeiro ou das Maravilhas – hoje
rebaptizado com o seu nome – junto a Felgueiras. Um santuário existente no local
evoca estes dramáticos acontecimentos, que culminaram com o seu primeiro
milagre: o de haver caminhado para a sepultura pelo seu próprio pé, segurando a
cabeça degolada entre as mãos!
Contudo, e embora a festa de
Santa Quitéria se celebre a 22 de Maio, ou – como hoje - no domingo seguinte quando o calendário não
coincide com aquele dia da semana, a data por excelência de devoção à santa é em
Felgueiras o dia de... S. Pedro. A explicação para tal facto e a lendária
história de Santa Quitéria é o que encontrará nesta “Viagem no Tempo”.
Nove irmãs gémeas. Nem menos. Os
seus nomes cristãos foram-lhes dados por um dos primeiros bispos de Braga, Santo
Ovídio, que as baptizou por Quitéria, Genebra, Vitória, Marinha, Marciana,
Germana, Basília, Liberata e Eufémia. Um baptizado atribulado e clandestino.
Porque o destino destas crianças à nascença deveria ter sido outro: mortas por
afogamento. Passemos, com base na lenda e tradição, a explicar:
Corria em Braga o ano 120 quando
o governador romano, o pagão Lúcio Atílio Severo, se ausentou da cidade para
acompanhar o imperador Adriano numa das suas viagens. É durante a sua ausência
que a esposa dá à luz nove gémeas. Por vergonha de tal aberrante e estranho
facto, ou então porque o nove era considerado um número agoirento, a mãe ordena
à sua criada Cita que, protegida pela noite, leve as crianças e as afogue no rio
Este, nas proximidades de Braga.
Acontece porém que Cita era
cristã e não conseguiu cumprir cabalmente as ordens recebidas. Levou as crianças
mas não as matou, entregando-as aos cuidados do arcebispo Santo Ovídio que,
durante os anos seguintes, cuidou da sua protecção, alimentação e educação.
Conhecedoras, desde cedo, da sua história e de como haviam sido salvas graças
aos sentimentos e às atitudes cristãs, as nove irmãs decidem, com dez anos de
idade, viver juntas e dedicar a sua vida ao cristianismo. Criaram, deste modo, e
com a autorização de Santo Ovídio, como que um pequeno convento.
Decorria e incentivara-se,
entretanto, a perseguição aos cristãos por parte das autoridades romanas. E
assim não demorou muito tempo que, denunciadas como cristãs, fossem algemadas e
conduzidas até à presença do governador Atílio Severo... seu pai. Desconhecedor
de toda a história das filhas o romano é surpreendido pela revelação que estas
então lhe fazem. E num rápido interrogatório à esposa e à criada confirma a
veracidade do que as jovens lhe afirmavam.
O governador Severo fica, no
entanto, contente com a descoberta, prometendo às filhas todas as felicidades e
futuros casamentos com belos jovens, ricos e nobres. Teriam, no entanto, que
renunciar à sua clandestina religião e abraçar o culto aos ídolos e deuses do
Império Romano. Se recusassem o governador justificaria o seu nome e,
severamente, teria que as punir, com a morte se necessário. Quitéria e as irmãs
pedem, então, para ficarem sós durante algum tempo para em conjunto decidirem
qual a sua opção. Mas a decisão, todas elas o sabiam, estava há muito tomada.
Assim, e pela última vez, despedem-se umas das outras e fogem precipitadamente
do palácio do pai.
A perseguição que o governador
enceta às filhas resultará apenas na prisão de Quitéria. Conduzida de novo à
presença do progenitor, a jovem é informada de que dispõe de mais alguns dias
para desistir da sua religião. Esgotado esse tempo o pai comunica-lhe que a
havia prometido em casamento a Germano, um jovem pagão, rico e nobre. Procurando
ganhar mais algum tempo Quitéria pede então mais alguns dias de reflexão,
oportunidade que lhe é concedida e aproveitada para, na companhia de 38 donzelas
cristãs, fugir e se refugiar no Monte Pombeiro, perto da actual cidade de
Felgueiras, no topo do qual existiria uma capela dedicada a S. Pedro.
Não conseguiu, no entanto, aí
permanecer em segredo durante muito tempo. Descoberta pelas autoridades romanas,
recebe vários emissários de seu pai intimando-a a aceitar o seu noivo Germano. A
resposta e opção são, contudo, inabaláveis: recusa as ordens do pai afirmando-se
esposa mística de Cristo. Assim, e perante tais recusas e atitudes Severo acaba
por ordenar a Germano que cerque o local e execute os cristãos, incluindo
Quitéria, tarefa de que se encarrega o próprio noivo ao decepar-lhe a cabeça no
amanhecer do dia 22 de Maio do ano 135. Tinha a mártir 15 anos. Desses momentos
trágicos, segundo a lenda, resultou a imediata cegueira dos criminosos e o facto
milagroso da santa ter avançado para a sepultura pelos seus próprios pés e
segurando a cabeça que lhe havia sido cortada.
Não foi muito diferente, segundo
a tradição, o destino das suas irmãs, também elas consideradas santas. Com
efeito todas elas acabariam, igualmente, por morrer martirizadas. Um ano depois
de Quitéria seria a vez de Genebra ser morta em Tuy, em Espanha. Não muito longe
daí, em Orense, também Marinha seria degolada, aos 18 anos. A mesma idade com
que foi morta, em Córdova, Vitória. Relativamente a Liberata e Germana
desconhece-se a data e locais onde terão padecido o seu martírio. Já de Eufémia
conta a lenda que, também ela, foi degolada na Serra do Gerês onde é, de resto,
a padroeira da capela das termas aí existente. Basília terá sido martirizada
perto do Porto, em Águas Santas. Quanto a Marciana, parece ter sido a que mais
tempo sobreviveu, tendo sido morta aos 35 anos de idade em Toledo.
Ainda segundo a tradição a
“história” de Santa Quitéria e a sua associação ao monte sobranceiro a
Felgueiras quase desapareceu com o decorrer dos séculos, mantendo-se, no
entanto, no cume da elevação uma velha e pequena capela dedicada a S. Pedro.
Contudo, em 1715 uma mulher de Braga, condenada à morte por um cancro no peito,
desloca-se ao monte solicitando o auxílio da santa. Poucos dias depois a devota
estava completamente curada. Estava, deste modo, (re)lançada uma fortíssima
devoção e veneração a santa Quitéria que resultou, logo no ano seguinte, na
colocação de uma sua imagem na velha capela de S. Pedro e, em 1719, no início da
construção no local de um novo e mais grandioso templo capaz de receber o número
crescente de romeiros. Apenas em 1734 se daria por concluída tal construção.
Entretanto, e paulatinamente, a
festa originária e mais antiga que se celebrava no monte – a dedicada a S.
Pedro, padroeiro da velha capela aí existente -
passava a ser confundida com a de Santa Quitéria. Enfim.... a atribulada
vida dos santos!
Como chegar
Não
há que enganar. Chegados a Felgueiras o Monte de Santa Quitéria impõe-se pelo
domínio topográfico que exerce sobre a cidade que, de resto, se estende na sua
base. Há diversos acessos ao topo da elevação e todos eles se encontram bem
sinalizados.
Como ver
Espaço público por excelência, o
Monte de Santa Quitéria é um autêntico parque verde que domina Felgueiras. Do
seu topo, e das vertentes, se avistam belas panorâmicas sobre a cidade e toda a
região envolvente. Deambular, passear ou até piquenicar por esta elevação, pelos
seus trilhos e acessos arborizados não carece, pois, de grandes instruções.
Visitar o templo dedicado à Santa é também bastante acessível. De facto, e para
lá das horas de culto, a igreja encontra-se aberta praticamente todos os dias do
nascer ao pôr do sol. Em caso de dificuldade é só dar um salto até à Casa da
Confraria, construída em 1946 mesmo ao lado do templo, que não só alberga um
belo restaurante, mas também uma tradicional loja onde os mais devotos (e não
só) podem adquirir as costumeiras pagelas, orações, imagens da santa ou simples
postais. Aí encontrará também alguém que lhe permitirá o acesso à igreja.
Já no interior do templo não
deixe o leitor de prestar atenção à sólida arquitectura oitavada do edifício
que, edificado na primeira metade do século XVIII, viria a ser ampliado no final
do século XIX. A atenção do visitante é, no entanto, rapidamente captada pelo
altar dedicado à Santa. Obra em talha, igualmente do século XVIII e dentro dos
modelos barrocos então dominantes, este altar inspira-se nas tradicionais
representações das “árvores de Jessé ou de Josué”, sendo que neste caso da raiz
da árvore partem, não os doze ramos correspondentes aos seus doze filhos e às
doze tribos de Israel, mas antes nove ramos que culminam nas nove irmãs gémeas.
No ramo mais alto sobressai a imagem de Santa Quitéria. Ao lado desta
representação, mas ainda no mesmo altar, uma pequena imagem de Santo Ovídio
recorda o papel de protecção e vigilância que, segundo a lenda, este ancestral
bispo de Braga teve para com as irmãs.
Novamente no exterior poder-se-á
contemplar a torre que domina a fachada da igreja e que, começada a construir em
1875, pretendeu dar maior monumentalidade ao templo. Só para o transporte da
primeira pedra aí colocada, que ocupa todo o comprimento da frente, foram
necessárias 14 juntas de bois! As “melhorias” introduzidas no santuário no final
do século XIX, em grande parte graças às fortunas dos “brasileiros” que
retornavam a Felgueiras, incluem também a construção da escadaria de acesso à
igreja, a colocação de um relógio e de um carrilhão, e a construção nas
proximidades de diversos e grandiosos edifícios que sofreram várias vicissitudes
e diferentes histórias na sequência, nomeadamente, da implantação da República e
da confiscação dos bens da Igreja pelo Estado.
Se a contemplação do interior do
templo não é difícil, mais complicada poderá ser, contudo, uma visita às oito
capelinhas do século XIX que, ao longo da encosta e da antiga estrada que ligava
Felgueiras ao topo do Monte, albergam imagens e cenas que retratam a vida e
martírio de Santa Quitéria. Estas capelinhas que, vistas de Felgueiras, vão
pontilhando de branco a encosta do Monte, desde a sua base até ao cume, não são
obviamente de difícil acesso. Os seus vidros foscos impedem contudo a observação
dos motivos representados no seu interior. Assim, para uma visita mais
pormenorizada, dever-se-á contactar a Confraria responsável pelo santuário
através do telefone 255 926343.
Embora o dia de Santa Quitéria se
celebra a 22 de Maio, o momento por excelência para visitar o local, pela sua
festa, pela romaria e pelo número elevado de devotos que atrai, é, como já
explicamos, a 29 de Junho, dia de S. Pedro. A crescente devoção que desde o
século XVIII aí se passou a fazer a Santa Quitéria fez com que desde então e
paulatinamente os romeiros tenham de algum modo secundarizado S. Pedro em
benefício da Santa Quitéria.
Que comer
O Monte de Santa Quitéria oferece
a quem o visita, não só o santuário dedicado à santa e a esplêndida panorâmica
que dele se avista, mas também, mesmo sob a Casa da Confraria, um restaurante de
ambiente e arquitectura acolhedores. Dizem os roteiros gastronómicos que toda a
comida aí servida é excelente. Nós pomos as mãos no fogo pela sopa de legumes e
pelo cabritinho assado no forno, acompanhado por batata assada, arroz de forno e
legumes salteados. A doçaria regional, de confecção própria, também não se deve
perder.
Atenção - talvez porque já é
“património” da terra, o restaurante de Santa Quitéria é como os museus: fecha
às segundas-feiras!
Para
saber mais
José LEITE – “Santos de cada
dia”. 2ª ed. aumentada. Braga: AO, 1987. Vol.2, p. 172-179.
P. Pinho NUNES – “Vida de Santa
Quitéria”. Felgueiras: Casa da Confraria, 1996. 48 p.
Miguel de OLIVEIRA – “Lenda e
História: Estudos hagiográficos.” Lisboa: União Gráfica, 1964. p. 129-148.
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