quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Um símbolo chamado LEANDRO
Por que o país chorou tanto a
morte de um cantor sertanejo
Celso Masson e Glenda Mezarobba
Fotos: Antonio Milena
O irmão Leonardo com o restante da família
no velório, a dupla no auge e a comoção em
Goiânia, com 150.000 pessoas
acompanhando o cortejo
Foto: Dawis Villar
Depois de dois meses lutando contra um câncer na região do tórax, o cantor Luís José Costa, o Leandro da dupla Leandro & Leonardo, morreu na madrugada de terça-feira passada, à 0h10, no Hospital São Luiz, em São Paulo. Por volta da 1 e meia da manhã, seu irmão Emival Eterno Costa, o Leonardo, subia num palco na cidade baiana de Caldas do Cipó, a 230 quilômetros de Salvador. Ele ainda não sabia da morte de Leandro. A certa altura do show, como se vinha repetindo nas apresentações de Leonardo desde que seu irmão começara o tratamento, a imagem de Leandro apareceu num telão colocado ao fundo do palco. O público ficou comovido ao ver a gravação e ouvir as palavras de Leandro: "Cuidem do meu irmão e não deixem ele fazer muita besteira". Leonardo terminou a apresentação agradecendo as demonstrações de solidariedade da platéia: "Tenho certeza de que em breve vamos voltar juntos aqui, para cantar para vocês", disse. Leonardo só ficaria sabendo da morte do irmão quando se preparava para tomar um carro em direção à cidade onde faria o próximo show. A notícia foi dada por um produtor da dupla. Leonardo desabou em lágrimas. Depois, mergulhou no silêncio.
Horas mais tarde, a tristeza de um irmão — Leonardo — se espalhou pelo país inteiro, como se todos os brasileiros fossem parentes próximos do cantor morto. Para as pessoas que jamais puseram um CD de Leandro & Leonardo no toca-discos, essa repercussão foi um espanto. Afinal, por que o Brasil reagiu de forma tão emocionada à morte do cantor? Leandro nem era ao menos uma voz muito fácil de identificar. Funcionava como apoio vocal do irmão Leonardo. Aquele rapaz de chapéu claro, no entanto, significava muito para o brasileiro por vários motivos. Leandro integrava um dos segmentos mais fortes do mercado fonográfico brasileiro, vendia discos como poucos artistas, cantava músicas românticas que embalavam o namoro e a paixão de milhões de casais e, talvez mais importante que tudo isso, era um ídolo que havia saído de uma juventude paupérrima para a fama e a riqueza com as músicas que cantava com o irmão. Representava a força do interior do país e também correspondia a uma certa nostalgia do mundo rural que acomete boa parte da população urbana. Junte-se a isso o fato de ser um jovem no auge da fama que foi atingido por uma doença raríssima, que o matou em dois meses. Tudo isso se somou na grande manifestação a que o Brasil assistiu durante o velório e o enterro do cantor sertanejo.
A onda de comoção teve início em São Paulo. Na Assembléia Legislativa paulista, aonde chegou na manhã de terça-feira, o corpo foi velado por uma multidão. Mais de 16.000 fãs apareceram para dar o último adeus ao cantor. Políticos, como o senador Eduardo Suplicy e o prefeito Celso Pitta, apresentadores de TV, como Hebe Camargo e Ratinho, além das duplas sertanejas Chitãozinho & Xororó e Zezé Di Camargo & Luciano estavam lá também para a despedida. Em Goiânia, onde foi sepultado, o corpo de Leandro foi levado ao cemitério por um cortejo de 150.000 pessoas. Estima-se que 60.000 delas passaram em frente do caixão do cantor durante o velório em Goiânia.
Essa multidão, no entanto, era apenas uma minúscula parte da legião de admiradores que a dupla Leandro & Leonardo arrebanhou ao longo de sua carreira. Foram 13 milhões de discos vendidos em pouco mais de uma década. Com essa marca, eles se tornaram um fenômeno no mercado brasileiro de discos, o sexto do mundo. Nesse mercado, a música sertaneja é o segundo gênero mais consumido, perdendo apenas para o samba. Detém 23% das vendas. O sertanejo, porém, tem uma peculiaridade em relação aos demais segmentos musicais. Ele não precisa estar em evidência na televisão para vender discos, ao contrário de outras ondas que vêm e vão, como a do pagode ou da música infantil. Isso porque representa um pedaço do Brasil que tem seus canais próprios de comunicação, independentemente de estar ou não em exposição na mídia. É o mundo das feiras de gado, dos rodeios e das festas agrícolas. A música sertaneja constitui o veículo de afirmação desse pedaço do Brasil e ilustra também como ele se modernizou. Nas últimas duas décadas, ela foi deixando gradativamente de ser aquela música das modas de viola de Tonico e Tinoco, conhecida como "caipira" — palavra, aliás, que os "sertanejos" detestam. O som anteriormente rústico foi incorporando em seus arranjos guitarras e sintetizadores. Os chapéus de palha de Jeca Tatu, as camisas xadrezes que definiam o gênero "caipira" foram, pouco a pouco, sendo substituídos pelos ternos de griffe ou pelas roupas de couro de vaqueiros texanos. Os puristas viram nisso a "descaracterização" de uma manifestação cultural genuinamente brasileira. Uma análise despida de preconceitos revela a verdade: estava mudando o jeito de o brasileiro do interior enxergar a si próprio.
Dentro da música sertaneja, a dupla Leandro & Leonardo ocupa um papel central. É deles o disco mais vendido do gênero no país. Com a música Pense em Mim, o quarto CD da dupla, lançado em 1990, atingiu a incrível marca de 2,8 milhões de cópias vendidas. Um recorde histórico, que só seria quebrado neste ano pelos pagodeiros do Só pra Contrariar. O número é ainda mais impressionante quando se leva em conta que, na época, o mercado de discos no Brasil movimentava a metade do dinheiro que gira atualmente. Leandro & Leonardo caíram como uma luva no gosto da população do interior do Brasil porque eram o espelho no qual ela se via refletida sem distorções, livre da visão estereotipada que se cristalizara nas capitais. Eles não falavam de terra, plantação ou colheita em suas músicas, e sim de amor e sexo. Longe da melancolia campestre da porteira, suas letras eram repletas de versos como os do sucesso Paz na Cama: Se de dia a gente briga/ De noite a gente se ama/ É que nossas diferenças/ Acabam no quarto/ Em cima da cama.
Ao dar vazão a essa nova voz do interior, que em tudo contrariava o puritanismo dos "jecas", eles não demoraram a conquistar metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro. Da mesma forma que Roberto Carlos na década de 70, Leandro & Leonardo passaram a ser a trilha sonora dos casais que vivem entre tapas e beijos, às voltas com romances atormentados, de intermináveis reconciliações. Além dos temas bem temperados, ajudou-os nessa conquista a já citada nostalgia do mundo rural presente na população urbana brasileira, fenômeno que é chamado pelos estudiosos de síndrome pastoril. Num país de urbanização recente como o Brasil, essa síndrome se manifesta nas novelas de ambientação campestre, nas festas juninas, nos jipes incrementados que tomaram conta das capitais e por intermédio do sucesso da música sertaneja. Embora reciclada e distante da caipirice original, ela ainda guarda ligações com o imaginário do campo, de onde provém a maior parte dos habitantes que se espremem nas grandes cidades.
Foto: Luzia Ferreira
O auge dos irmãos, como uma das três maiores duplas
sertanejas do país: ajudando a renovar o gênero
Enxada — Ayrton Senna era o símbolo do brasileiro capaz de fazer sucesso no exterior e num setor altamente competitivo e tecnológico. Leandro & Leonardo encarnavam o sujeito pobre que, graças a seu trabalho e talento, consegue chegar ao topo. "A ascensão social é algo muito valorizado em nações jovens, como o Brasil e os Estados Unidos, da mesma maneira que a tradição familiar é o valor supremo em países como os da Europa", explica Jorge Forbes, presidente da Escola Brasileira de Psicanálise. A trajetória de Leandro era uma fábula exemplar de ascensão social. Ele nasceu numa cidadezinha chamada Goianápolis, no interior de Goiás, de apenas 15.000 habitantes, a maior parte deles ligados à lavoura. Os cantores foram os primeiros dos oito filhos do casal Avelino e Carmem Costa. Leandro nasceu na fazenda em que os pais trabalhavam, numa casa de pau-a-pique, com camas espalhadas pelos cantos. Eles viviam como tantas outras crianças do interior do Brasil, que pegam na enxada cedo, ajudando os pais na roça. Trabalhavam como diaristas em plantações de tomate, um serviço pelo qual hoje receberiam o equivalente a 10 reais — por dia, não por hora. O trabalho ia de sol a sol, começava às 7 da manhã e terminava às 5 da tarde. Cada um levava sua própria comida. Na marmita da dupla havia geralmente abóbora, ovo, feijão e arroz. "Eles trabalhavam a semana toda para comer carne no domingo", lembra Jair de Souza Leite, hoje com 48 anos, amigo da família há quase trinta.
Adolescentes, Leandro & Leonardo, quando ainda eram apenas Luís e Emival, trabalharam na fazenda Souzinha. O pai, Avelino, e os dois filhos mais velhos cuidavam de 15.000 pés de tomate. Na hora da colheita, ficavam com metade da safra. No início dos anos 80, achando que o preço do tomate não compensava, os meninos foram tentar a sorte em Goiânia. "Deram duro roçando lotes na cidade", comenta um conhecido daqueles tempos. Na infância, o passatempo predileto de Leandro era assistir a novelas. Como a família não tinha aparelho de TV em casa, ele escapava da escola para acompanhar, na casa de uma tia, as peripécias de seu ídolo, o personagem João Coragem, vivido por Tarcísio Meira em Irmãos Coragem. Leandro terminou o primário em curso supletivo, conquistou o diploma ginasial e por aí parou. A música entrou cedo na vida deles. Ao chegar à cidade, vindos da luta na lavoura, carregavam umas poucas roupas e um violãozinho. Depois de ganhar um desses concursos de rádio para calouros do interior, começaram a cantar em restaurantes modestos até que, finalmente, vieram as gravações e o sucesso, cada vez mais estrondoso. Ao contrário de muitos rapazes que conseguem fazer dinheiro grosso muito cedo, Leandro sabia cuidar bem do que ganhava.
Com a renda dos shows e dos discos, Leandro tornou-se um empresário agressivo e bem-sucedido, símbolo do lado do Brasil que dá certo. Formou um patrimônio sólido. Era dono de duas fazendas no Estado de Tocantins e de uma fazenda e uma chácara em Goiás. No total, possuía cerca de 4.000 alqueires de terra, nos quais criava 6.000 cabeças de gado. Além disso, tinha vários imóveis em Goiânia, entre eles um prédio de três andares que chegou a hospedar um shopping center e um terreno de 15 alqueires dentro da cidade, próximo ao aeroporto. O grosso dos rendimentos do cantor vinha dos cachês de shows da dupla, que oscilavam entre 35.000 e 50.000 reais por apresentação. As várias campanhas publicitárias que Leandro & Leonardo protagonizaram também renderam um bom dinheiro. O novo contrato assinado com a gravadora BMG daria à dupla direitos autorais da ordem de 17% sobre o preço de cada CD vendido. Mais, por exemplo, do que ganha Roberto Carlos: 15%. O primeiro disco pela nova companhia, que está pronto e deverá ser lançado já nesta semana, prometia ser a arrancada para uma nova fase na carreira de ambos. Nos últimos anos, a dupla vinha perdendo público e vendendo cada vez menos discos — no ano passado foram 500.000 cópias, contra 1 milhão de unidades do CD Amigos, gravado juntamente com as outras duas grandes duplas sertanejas do país, Zezé Di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó.
Vida amorosa — Leandro tinha uma vida amorosa movimentada. Casou-se pela primeira vez aos 23 anos. Ele mesmo reconheceu que a decisão foi prematura, tanto que o casamento não durou mais de um ano. Com a primeira mulher, Cecília Gonçalves, o cantor teve o filho Thiago, hoje com 12 anos. O segundo casamento, com a ex-modelo Andréa Mota, também passou por momentos difíceis. Os olhos verdes de Leandro e a covinha no queixo faziam com que muitas garotas invadissem os camarins após cada show e isso sempre foi motivo para ciúme. Desconfiada de que o marido a enganava, Andréa chegou a contratar um detetive particular, que grampeou os telefones de Leandro e gravou conversas comprometedoras. Nada, porém, foi tão perturbador para a vida amorosa do casal quanto o boato que se espalhou a partir de Goiânia, enquanto Andréa estava ainda grávida da primeira filha. Era chocante: Leandro teria assassinado a mulher e cometido suicídio depois de saber que ela havia contraído Aids. Os rumores ganharam tanta força que Leandro precisou convocar uma entrevista coletiva para desmentir a história. Meses depois, em 1995, o casal comemorava o nascimento da filha, Lyandra. Neste ano, Andréa e Leandro tiveram outro filho, mas não seguraram o casamento. A separação aconteceu em agosto do ano passado.
Enxugadas as lágrimas pela morte do cantor, os fãs de música sertaneja se perguntam: qual será o futuro de Leonardo? Embora seja cedo para saber que decisão o cantor tomará, é provável que continue por um bom tempo na profissão. Além do disco no forno, a agenda de shows está fechada até novembro. Por decisão de Leandro, parte dos direitos do novo disco será doada para três associações de combate ao câncer, que ele mesmo escolheu. Há um caso parecido entre as duplas brasileiras que mostra como a tragédia de uma morte não significa necessariamente que a carreira do sobrevivente está ameaçada. No mês seguinte à morte do cantor João Paulo, num acidente no ano passado, as vendagens do último disco gravado com seu parceiro Daniel triplicaram. Como artista-solo, Daniel teve sua carreira "reposicionada", para usar o jargão da indústria fonográfica, explorando uma certa sensualidade que não cabia nas apresentações da dupla. Com isso, o cantor conquistou ainda mais fãs. Passou inclusive a receber tratamento especial de sua gravadora, que desde então tem buscado apoio em uma assessoria internacional para capitalizar melhor a imagem de Daniel. A carreira da dupla Leandro & Leonardo ia meio mal das pernas quando a doença atacou o cantor. É possível que a comoção criada em torno da morte ajude a devolver Leonardo ao bom caminho artístico. Mas para ele seria uma ironia crudelíssima voltar à trilha do sucesso ajudado pela tragédia que vitimou seu irmão.
Agonia rápida
Apenas um mês e meio. Esse curto espaço de tempo, decorrido entre o instante em que o tumor de Leandro foi diagnosticado e a morte do cantor, fez com que os brasileiros voltassem a se preocupar com um temível fantasma: o câncer. Em vez de entrar em pânico, é preciso entender que o caso de Leandro, que morreu com apenas 36 anos de idade, foi uma exceção em todos os aspectos. O cantor desenvolveu um tumor raríssimo, que costuma aparecer em crianças e adolescentes, não em adultos. O caso de Leandro fugiu à regra também pela extrema agressividade do tumor, que triplicou de tamanho em apenas duas semanas (veja quadro). Por último, Leandro reagiu muito mal à quimioterapia, tanto do ponto de vista da redução do tumor quanto dos efeitos que as drogas tiveram sobre seu sistema imunológico. Foi como se não apenas um, mas três raios caíssem sobre ele. Por isso mesmo, as chances de alguém morrer de câncer em condições parecidas com as de Leandro são mínimas.
Uma previsão bastante realista, divulgada em fevereiro pelo Instituto Nacional do Câncer, aponta que neste ano a doença matará no país 107.950 pessoas, de ambos os sexos e de todas as faixas etárias. Desse total, menos de 10% terão até 39 anos. Os especialistas afirmam que, na grande maioria das vezes, duas condições são necessárias para que um câncer se desenvolva. A primeira é a predisposição genética. Não que o câncer seja hereditário. Indivíduos cujas células apresentam certos tipos de alteração nos cromossomos podem estar mais sujeitos a tumores. Para que eles se desenvolvam, é preciso que haja um segundo evento, em geral fatores ambientais e estilo de vida. Fumantes e indivíduos expostos a agrotóxicos são considerados pertencentes às populações de risco. Leandro, que plantou tomates na juventude, se encaixava nos dois perfis. Ainda assim, a médica oncologista Maria Lydia de Andrea, que tratou do cantor, diz que é impossível estabelecer qualquer relação entre a doença de Leandro e o fato de ele fumar ou ter lidado com defensivos agrícolas.
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